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quinta-feira, agosto 30, 2007

visitando a família

Domingo. A família no carro. O filho ao volante. O pai ao lado, como uma passagem de testemunho. No banco de trás, a mãe e a tia. Destino - cemitério. É dia de visitar a família que o filho nunca conheceu, mas que "será tua até morreres", diz a mãe. O filho em silêncio ao volante, mudando as estações de rádio até conseguir um difícil equilíbrio entre o que ele quer ouvir e o que pensa que não irá perturbar os outros. São gostos muito diferentes para conciliar. Opta pelo relato. Joga a aac, ou alguém joga contra ela, sempre é algo em comum entre todos. No banco de trás, a tia murmura baixinho uma reza. Um ritual que cumpre desde criança, desde o tempo em que as viagens eram longas e perigosas, desde o tempo em que "a vida era dura e fazíamos estes caminhos todos a pé, saindo de madrugada e carregando a carga às costas ou à cabeça." À medida que o carro avança em direcção à vila do interior, todos tentam quebrar o silêncio que se instalou. O resultado não é um diálogo, mas dois ou três monólogos. O pai comenta a estrada e identifica as aldeias que vão surgindo no horizonte. A mãe contradiz (pelo menos dialoga), para em seguida mudar para um tema só seu. A tia reza.
E por fim, a vila e a praça em obras. Velhas árvores centenárias entretanto arrancadas porque o presidente da câmara é bronco como só os broncos sabem ser e está pasmado com as possibilidades de uma praça renovada e embelezada com árvores importadas. Não é ficção, mas merecia ser. A que cúmulos chegam os idiotas com poder. Pela rua empedrada segue o carro em direcção ao cemitério, adormecido ao lado da igreja. Os passageiros saem sentindo o bafo quente da tarde. Abre-se a mala, tiram-se as flores de plástico ("duram mais"). Faz sentido, flores mortas para os mortos. Afinal o que importa é mesmo o gesto e seguramente a campa ficará menos pesada sobre os defuntos que nesse dia são visitados e recordados. Mãe e tia dirigem-se para a campa da mãe. O pai apresenta (novamente) ao filho alguns dos mortos e os seus rostos pálidos nos retratos a preto e branco olham de volta sem um sorriso. Ninguém sorri nas fotografias colocadas nas campas, já repararam nisso? Parece que são tiradas especialmente para esse momento.
(Boa tarde, queria tirar fotografias.)
(Ah, sim? E para que efeito? Para documentação?)
(Não. É para colocar na minha campa, quando morrer.)
(E está para breve? Pois sente-se. Não se mova. Não se ria. Olhe, faça de conta que está morto.)
Para além das vozes da família e de restos de gritos e risos que surgem vindos da ribeira que atravessa a vila, tudo o resto é silêncio. Regressam ao carro e atravessam a vila. Velhos sentados em bancos à sombra dos edifícios levantam os olhos à sua passagem, mas regressam à conversa ou à mudez em que se encontravam. Quem os vê fica com a impressão que se limitam a passar assim os dias à espera de mudarem definitivamente para o cemitério. Toda a terra é a antecâmara de um cemitério. Aliás, todo o interior do país se vai transformando num longo cemitério, pelo menos durante onze meses por ano, até que se dá o célebre milagre da aparição dos franceses, que ressuscita a luz das casas e faz nascer meninas lourinhas, adolescentes de orelhas e narizes perfurados com anéis, madames de cabelo pintado e automóveis de matrículas amarelas onde antes só havia velhas de negro e carros de bois (alguns dos bois têm também anéis no nariz). Esta vila, no entanto, está morta doze meses por ano, há muitos anos.
No carro, a família discute o que fazer a seguir. Regressar à vida ou visitar os familiares que ainda restam na zona, espalhados por povoações vizinhas. Alguém lembra que ir visitar uns e não ver os outros dará origem a melindres. Mas visitar todos implica chegar muito tarde a casa e há muito que fazer. Como a bola não se resume à aac, há o slb às 19h e o scp às 21h. E o prof. Marcelo à mesma hora. Portanto, decide-se que o melhor é não visitar ninguém e regressar. Vendo bem, é só uma questão de tempo para que não haja esses problemas. Porque mais cedo ou mais tarde, todos os parentes poderão ser comodamente visitados no cemitério, evitando transtornos desnecessários. E se cada um receber o seu raminho de flores de plástico, não terá qualquer razão para ficar melindrado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom!