A crónica do J. Pereira Coutinho (Expresso) que a seguir transcrevo fala de uma questão que há muito incomoda e causa danos em Portugal: o da "carta branca" dada aos arquitectos, sobretudo aos que ganharam fama e prestígio. A eles tudo é permitido, como se o toque deles fosse o toque de Midas. Acontece que eles também erram e cometem atrocidades urbanísticas (a Cris, portuense de coração e alma, refere várias vezes o atentado sobre a Avenida dos Aliados, que só conheço na versão actual - feia). E isto acontece habitualmente em Portugal, pois somos capazes do oito e do oitenta na nossa relação com os criadores, e não apenas em relação aos arquitectos (que sofrem já de casos patológicos de capricho, arrogância e sobranceria). Ou desprezamos totalmente os grandes criadores, ou curvamo-nos perante eles, deixando que tudo o que façam, pensam e dizem, seja a verdade e o certo e o belo.
Saramago é um belo exemplo, pois até os seus delírios senis sobre uma União Ibérica são comentados seriamente em vez de ignorados ou tratados como mereciam, jocosamente.
Contaram-me também que, certa vez, um mosteiro do Norte foi sujeito a intervenção de restauro. Acontece que o arquitecto olhou para uns azulejos de determinada cor (a cor da ordem religiosa que fundou o dito mosteiro) e achou que os deveria arrancar e colocar outros doutra cor. Em qualquer país civilizado, o sr teria sido chamado à razão e, caso teimasse, seria despedido por justa causa (e com ameaça de processo judicial por tentativa de vandalismo). Mas como foi cá, a visão do sr arquitecto foi uma expressão da vontade divina e os azulejos foram substituídos. A pobre Clio deve ter sangrado de dor nesse dia.
Um último exemplo é dado pela referida crónica que a seguir se pode ler:
"Uma lição espanhola
Álvaro Siza remodelou em tempos a marginal de Leça da Palmeira, onde vivo parte dos meus dias. Caso não saibam, Leça tinha um ‘calçadão’ simpático junto à praia, que começava no clube de vela local e terminava no farol da Boa Nova. O resultado, que hoje se contempla com um esgar de horror, consiste numa longa pista de aterragem, desértica e cimentada, por onde passam automóveis em fuga. Como foi isto possível? Não vale a pena falar da actuação camarária: a Câmara local não se distingue das autarquias portuguesas que permitem qualquer atentado patrimonial, desde que o mesmo seja cometido por arquitectos com provas dadas. No caso de Siza, com provas dadas no mais velho vício da arquitectura moderna: a crença de que a construção pública deve apenas servir o capricho do arquitecto – e não seres humanos reais, daqueles que normalmente habitam o planeta Terra. Porque a arquitectura, ao contrário de outras formas de expressão artística, não é individualmente consumida (como a música, a literatura, a pintura); ela é colectivamente consumida, um pormenor que reforça a sua inescapabilidade e convida a um mínimo de prudência e humildade.
Foi precisamente esse mínimo que Siza conheceu, não em Portugal, mas em Espanha. O caso é conhecido: Siza apresentou um projecto para o eixo Prado-Recoletos, em Madrid, que alegadamente implicava o abate de 900 árvores e a construção de cinco pistas de automobilismo, na melhor tradição do autor. O ‘conceito’ foi contestado por políticos locais e pela excentricidade de Carmen Thyssen, viúva do milionário. Cinco anos depois, Siza, que muito democraticamente prometia não ouvir ninguém, acabou por ouvir. Não haverá abate, não haverá pistas de automobilismo. E, por uma vez, a natureza autoritária da arquitectura não se abaterá impunemente sobre os terráqueos. Uma vitória para Madrid? Sem dúvida. E uma derrota, não para Siza, mas sobretudo para nós. Porque a distância que nos separa de Espanha é grande. E porque, aqui na paróquia, a submissão dos portugueses à impunidade de autarcas e arquitectos foi gerando o país inabitável que se vê pela janela. Do carro ou da sala."
Álvaro Siza remodelou em tempos a marginal de Leça da Palmeira, onde vivo parte dos meus dias. Caso não saibam, Leça tinha um ‘calçadão’ simpático junto à praia, que começava no clube de vela local e terminava no farol da Boa Nova. O resultado, que hoje se contempla com um esgar de horror, consiste numa longa pista de aterragem, desértica e cimentada, por onde passam automóveis em fuga. Como foi isto possível? Não vale a pena falar da actuação camarária: a Câmara local não se distingue das autarquias portuguesas que permitem qualquer atentado patrimonial, desde que o mesmo seja cometido por arquitectos com provas dadas. No caso de Siza, com provas dadas no mais velho vício da arquitectura moderna: a crença de que a construção pública deve apenas servir o capricho do arquitecto – e não seres humanos reais, daqueles que normalmente habitam o planeta Terra. Porque a arquitectura, ao contrário de outras formas de expressão artística, não é individualmente consumida (como a música, a literatura, a pintura); ela é colectivamente consumida, um pormenor que reforça a sua inescapabilidade e convida a um mínimo de prudência e humildade.
Foi precisamente esse mínimo que Siza conheceu, não em Portugal, mas em Espanha. O caso é conhecido: Siza apresentou um projecto para o eixo Prado-Recoletos, em Madrid, que alegadamente implicava o abate de 900 árvores e a construção de cinco pistas de automobilismo, na melhor tradição do autor. O ‘conceito’ foi contestado por políticos locais e pela excentricidade de Carmen Thyssen, viúva do milionário. Cinco anos depois, Siza, que muito democraticamente prometia não ouvir ninguém, acabou por ouvir. Não haverá abate, não haverá pistas de automobilismo. E, por uma vez, a natureza autoritária da arquitectura não se abaterá impunemente sobre os terráqueos. Uma vitória para Madrid? Sem dúvida. E uma derrota, não para Siza, mas sobretudo para nós. Porque a distância que nos separa de Espanha é grande. E porque, aqui na paróquia, a submissão dos portugueses à impunidade de autarcas e arquitectos foi gerando o país inabitável que se vê pela janela. Do carro ou da sala."
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