Em 1384, Portugal vivia em sobressalto. D. Fernando morrera no ano anterior, deixando como herdeira apenas uma filha, (in)convenientemente casada com o rei castelhano. A divisão entre os defensores de D. Beatriz e os seus opositores, que (em parte) temiam uma anexação por parte de Castela, levou à criação de um outro partido, liderado por um filho ilegítimo do avô da infanta. D. João, Mestre de Avis, filho de D. Pedro I e da dama Teresa Lourenço.
Em 1384, as hostes castelhanas entram em Portugal e dirigem-se a Lisboa, para um cerco magnífico que Fernão Lopes descreve de forma espectacular. Entretanto, contam-se apoios. Terras, castelos, nobres, juram fidelidade a um ou a outro partido. A lealdade de muitos era reforçada pela ameaça das armas ou pela promessa de recompensas, sobretudo terras e títulos. D. João, pouco tendo, promete muito de forma a angariar o maior número de apoiantes.
Escaramuças ocorrem um pouco por todo o reino. Expedições para pilhagens (uma forma de alimentar os guerreiros e de obter dinheiro para lhes pagar os soldos) ou para forçar uma povoação ou um alcaide a mudar de lado tornam-se uma prática corrente.
Um dos principais apoiantes do Mestre de Avis, Nun'Álvares Pereira (que ficará para a história como o santo condestável) comanda várias expedições dessa natureza, sobretudo no Alentejo.
(Portel)Em 1384, encontramo-lo às portas de Portel, cujo alcaide tomara o partido castelhano. Fernão Gonçalves, assim era o seu nome, "era o mais saboroso homem que em Portugall avia, e mui sollto em suas pallavras", de acordo com Fernão Lopes. Os homens de Nun'Álvares tinham cercado o castelo e terminavam a ceia. Alguns deles, com a coragem avivada pela "avomdamça dos muito boons vinhos que ha em aquell logar", começaram a combater o castelo, sem grande resultado. Do alto das muralhas, Fernão Gonçalves comentou:
- Vistes numca mais estranha cousa que esta, que Portell combate Portell?
Com alguma razão, pois era o espírito dos vinhos de Portel quem comandava os ébrios guerreiros sitiadores. Até que Nun'Álvares os mandou parar.
Nun'Álvares e Fernão Gonçalves entraram em conversações. O primeiro mostrou-se maravilhado pelo facto de "tam boom fidallgo e de tam grande linhagem ... lindo Portuguees como era" (lisonjeador o nosso condestável) estar ao serviço de Castela. O alcaide mostrou-se arrependido, mas de mãos atadas. Alçara voz por Castela por conselho da mulher. Agora, tinha um acordo com os castelhanos e não podia voltar atrás.
Nun'Álvares compreendeu e mostrou-se condescendente. Que o alcaide falasse com os castelhanos e ouvisse o seu conselho, para se acordarem os termos de uma preitesia.
Assim foi feito. Nun'Álvares ficaria com Portel (e Vila Ruiva, também nas mãos do mesmo alcaide) e deixaria Fernão Gonçalves e os seus abandonarem o castelo em segurança e com as suas posses. Fernão Gonçalves partiria então para Castela, onde tinha os castelos de Safra e Segura, as moedas que pagaram o seu apoio ao rei castelhano.
(Vila Ruiva)"E quamdo Fernam Gomçallvez e sua molher ouverom de partir da villa, pero pouco prazer tevesse" pediu que trouxessem "trombas pera tanger". E ao som das trombetas, o alcaide arrependido virou-se para a mulher e disse:
"Amdaae per aqui, boa dona, e hiremos balhamdo [bailando], vós e eu, a soom destas trombas; vós por maa [minha] puta velha, e eu por villaão fodudo no cuu ca assi quisestes vós. Ou cantemos desta guisa, que será melhor:
Pois Marina baillou
tome o que ganou
melhor era Portel e Villa Ruiva
que nom Çafra e Segura,
tome o que ganou,
dona puta velha"
*
(cit. de Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Primeira Parte, cap. CLVIII)
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