Anoitece na vilória, igual a tantas outras: uma rua que a atravessa a meio, duas ou três perpendiculares e dúzia e meia de becos sujos, com despejos e restos de galinheiros e hortas mal cuidadas; um semáforo a meio da rua principal, uma escola, um quartel da GNR, uma papelaria, uma caixa geral, uma igreja e cafés, muitos cafés, alguns lembrando tascas e tabernas, outros repletos do alumínio da asae. Anoitece na vilória, que só se distingue das outras pelo nome, e o silêncio ocupa as ruas, sob um luar difuso e a sombra das montanhas. Os postes de iluminação acendem-se e as pessoas parecem fugir deles, refugiando-se em casa. As noites têm em si uma carga de terror: que se passará dentro de todas aquelas paredes, escondido dos olhares de todos? Algumas janelas brilham, tal como as vitrines dos cafés e dos restaurantes. Atrás do balcão, de cabeça levantada para a televisão, o dono do café aguarda por clientes que, em casa, terminam a refeição antes de deixarem as mulheres presas à louça e à telenovela, os filhos ocupados com os telemóveis, os portáteis ou os trabalhos de casa, e partirem para o último café do dia. Ou o último copo de vinho. Ou a última cerveja. Ou a última conversa. Num desses estabelecimentos, meio café, meio restaurante, de balcão seboso e copos riscados do uso, um grupo de homens junta-se para passar a noite. O silêncio da rua é interrompido pelas suas gargalhadas, pelo ruído das suas vozes entrelaçando-se, lutando umas com as outras, e pelo tinir do vidro das garrafas nas beiras dos copos. Nesse grupo estão dois homens, um chamado Alberto, o outro chamado Carlos, Maria. A noite alonga-se, entre jogos de cartas e dominó, entre apostas e conversas brejeiras sobre a anatomia das mulheres conhecidas por todos. Atrás, o dono do café, mudando as garrafas vazias por outras acabadas de abrir, ri-se e acrescenta algo da sua lavra. Com tudo isto é meia-noite, uma da manhã, depois duas da manhã. E nessa altura a porta do café abre-se para deixar sair os homens, cambaleando uns, tropeçando outros, todos falando alto, de chaves do carro na mão. Em pouco tempo, três ou quatro carros se afastam, deixando a rua novamente em silêncio. O dono do café é o último a sair. Fecha a porta, entra no seu carro e vai para casa. A rua mergulha novamente no silêncio habitual. Só de um dos becos chega um murmúrio aos ouvidos mais atentos. É nesse beco que Alberto e Carlos, Maria, se encontram, calças em baixo, o primeiro atrás do segundo - daí o Maria da sua alcunha - procurando tirar da cabeça a anatomia feminina que as aparências os obrigam a elogiar. É nesse beco que os dois são o que são e fazem o que fazem. Fora desse beco, coitados, não são ninguém.
2 comentários:
Para conto está fantástico. Deves continuar. Mas parece-me que tem qulaquer coisa de real...
Eu, pelo contrário, acho que alguém anda a exagerar em delírios... Cuidado...
(Já agora, cá para nós, bem o sabemos: Carlos, Alberto e Maria!)
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