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domingo, abril 04, 2010

"Anamika"


*


"... ela era simplesmente encantadora como uma flor é encantadora, suave, com pétalas, olhos de abelha, lábios rosados, sempre à beira de soltar uma risada borbulhante, como uma pomba, um sorriso adorável, e tinha uma índole boa que era quase uma auréola. Onde ela estivesse havia paz, satisfação, bem-estar. (...)
Nunca se deixava levar para um campo nem para outro; conseguia este equilíbrio deixando-se simplesmente ficar no centro, para que todos viessem ter com ela, atraídos por ela como as abelhas por uma flor de lótus. Um lótus com a sua beleza profunda, cremosa, pacífica - era o que ela era. Ou uma pérola, suave e luminosa.
(...)
Então por que razão terá tudo mudado no momento em que o triunfo deveria ter atingido o seu apogeu? Por que terá a boa sorte mudado de rumo e mergulhado de forma tão chocante? (...)
Uma, Aruna e todas as outras primas juntaram-se para verem o tal partido quando chegou, já na qualidade de noivo, ao casamento e quase fugiram de susto ao vê-lo. Era tão mais velho do que Anamika, com uma expressão tão sinistra e tão convencido da sua superioridade em relação a todos os presentes! (...) As crianças perceberam isso imediatamente: naquele casamento não ia haver piadas do noivo, nem ele iria dar-lhes pequenas prendas e subornos. Aliás, quase não deu por elas; parecia nem sequer ter dado por Anamika. As crianças também perceberam isso - que ela estava a casar com a única pessoa absolutamente impenetrável à beleza, graça e distinção de Anamika. Estava demasiado ocupado em manter a sua superioridade. (...) As crianças contorciam-se para conseguirem ver para onde é que ele estaria a olhar: haveria algum espelho pendurado um pouco acima da cabeça da noiva onde ele estivesse a ver-se?
Sim, de certa maneira havia: era o rosto da mãe, com um nariz rão pontiagudo e uma expressão tão sinistra como a dele (...). Anamika era apenas um intruso, alguém que tinha sido trazido porque era costume e porque, ao casar com ele, aumentaria a sua superioridade em relação aos outros homens. Por isso, tinham de a suportar.
Só que eles não a suportavam. (...) Anamika tinha sido espancada, era frequentemente agredida pela sogra, com a concordância do marido (...). Anamika passava todo o tempo na cozinha (...). Anamika comia os restos das panelas antes de as arear (...). Quando Anamika não estava a lavar loiça ou a cozinhar, estava no quarto da sogra a massajar os pés da senhora ou a dobrar e a limpar-lhe a roupa. Nunca saía de casa, excepto para ir ao templo com as outras mulheres. Não saíra de casa uma única vez com o marido. (...)
Depois chegou a notícia de que Anamika tinha ido para o hospital. Dizia-se que tinha abortado em casa depois de levar uma tareia. Dizia-se também que não podia ter mais filhos. Agora Anamika era imperfeita, era uma mercadoria com defeito.
(...)
Disseram-lhes que Anamika se tinha levantado da cama às 4 da manhã, apenas um pouco mais cedo do que costumava levantar-se, para ir receber o leite que o leiteiro vinha entregar à porta da cozinha. Se alguém a ouviu, não pensou em nada em especial por ela andar pela casa àquela hora, era normal. O que ela fez a seguir não era normal. (...)
Às 5 da manhã a sogra acordou e ouviu um gemido. Tinha ouvido uma lata a cair e pensou que era um cão vadio a vasculhar o lixo à porta da cozinha. No entanto, os gemidos fizeram-na levantar e ir à cozinha ver o que se passava. Viu através das tábuas da porta pequenas chamas a tremeluzirem na varanda. Foi lá fora e descobriu Anamika, carbonizada, a morrer.
Foi o que ela disse. À polícia. À família de Anamika.
O que alguns vizinhos disseram foi que ela, talvez de conluio com o filho, tinha arrastado Anamika para a varanda àquela hora, em que ainda estava escuro (...) e a tinha amarrado com um sari de nylon, regado com querosene e lhe tinha deitado fogo.
O que o marido disse foi que estava em viagem e que só voltou nessa tarde, quando soube da notícia. (...)
O que a família de Anamika disse foi que tinha sido uma fatalidade, que Deus assim quisera e era aquele o destino de Anamika.
Uma não disse nada."


Anita Desai, O Jejum e a Festa, Gradiva
(A Booker Prize Finalist - 1999)
*Amrita Rao

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