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terça-feira, janeiro 01, 2008

Juntos ou separados

É noite e a casa está vazia. Imagino que seja noite. Tenho tudo fechado desde que foste embora. Mas tenho quase a certeza que é noite, porque não ouço os carros na rua (só um, a espaços, vai passando). Hoje finalmente consegui entrar no quarto onde... E é lá que estou agora. Quando abri a porta fui invadido pelo teu cheiro, fugindo da escuridão onde o tinha aprisionado. Não era o teu perfume, mas o cheiro da tua pele. Ainda enche o quarto, como me encheu os pulmões. Assustei-me, porque não esperava sentir-te ali.
Acendi a luz. A primeira coisa que vi foi a cama. Por muito que não a quisesse ver, lá estava ela, impecável na sua colcha. Nem um vinco, nem um centímetro descentrada. E, no topo, as duas almofadas. Para quê duas almofadas se já não estás? Para quê uma, sequer, se já não durmo? E muito menos dormirei aqui, seria o mesmo que ir dormir à tua porta, à tua nova porta e o chão é demasiado frio para mim. Na parede, sobre as almofadas, estão as marcas de dois caixilhos encimados por um pontinho negro. Era ali que tínhamos pendurado os nossos retratos. O teu tiraste-o. O meu, quebrei-o porque não gosto de coisas incompletas. Deve ser por isso que não gosto de mim. E de ti.


Afasto o olhar da cama. Observo a janela fechada. Naquele parapeito passámos horas à espera do pôr-do-sol, ouvindo os sons da cidade. E quando os sinos de Santa Cruz ou o badalar da torre se ouviam, tu sorrias e eu sorria contigo, saboreando esse travo de passado que nos adoçava o espírito. Só nos faltava uma vista para o rio para sermos personagens de um romance.


Caminho pelo quarto. Passo pelo guarda-fatos, ignoro-o como se ignora uma caixa de sapatos vazia. Sento-me na cama, tendo o cuidado de não quebrar a sua ordem imaculada. O olhar sobe do tapete, que sempre achei feio, para a cómoda. Vejo-me no espelho e sinceramente acho que não sou eu. Surpreendeu-me a minha aparência. Se calhar foi por isso que foste embora, se calhar nesse dia chegaste a casa, olhaste-me e não era eu. Encolho os ombros. Para quê atormentar-me mais? Foste embora, és passado. Estamos separados. Mesmo que voltes, já não existes para mim. Estou indisponível. Indisponível, percebes? A janela está permanentemente fechada, o guarda-fatos permanentemente vazio e o quarto para sempre fechado. A partir de hoje é assim que será. E tu, em consequência, ficas para sempre fora do meu pensamento. Mesmo quando soarem as badaladas da torre. Chamo-lhe cabra, como faziam os estudantes, e ela cala-se e não me fala mais de ti, não volta a dizer o teu nome naquele linguajar Dong Dong de metal oco. Está tomada a decisão. Esqueço-me então de ti. Afinal é fácil, basta querer, basta tentar e está feito.


Atraído por um cintilar, afasto o olhar do meu reflexo. Olho para a cómoda à minha frente. Só hoje reparei nas gavetinhas falsas. Três ilusões dispostas lado a lado, com um puxador em cada. Puxo o da esquerda. Nada. O da direita. Nada. O do meio. Nada? Afinal é uma gaveta verdadeira. Abro-a totalmente. Há algo que brilha no seu interior. Parecem jóias. Coloco a mão e tiro-as para fora. São dois colares, que disponho sobre a cómoda. Fecho novamente a gaveta e fico a olhar. A pensar. Afinal... Se calhar não te foste mesmo embora. Se calhar estamos ... estamos juntos. Deito-me na cama e sorrio com este pensamento. Vou ficar aqui à tua espera, à espera que entres em casa, caminhes para o quarto e abras a janela antes de te deitares ao meu lado. Mas vem depressa, porque devem estar quase a soar as badaladas da torre.

3 comentários:

Anónimo disse...

"... não gosto de coisas incompletas. Deve ser por isso que não gosto de mim. (...) Foste embora, és passado. (...) Esqueço-me então de ti. Afinal é fácil, basta querer, basta tentar e está feito."
Qual é esse segredo tão simples? Diz-me qual é,por favor... É demasiado doloroso equacionar se realmente foste embora ou é hoje que decides algum tipo de regresso, ainda que de visita, meramente físico e pontual... Sinto-me desde sempre incompleta e se calhar é por isso mesmo que teimo em não gostar de mim... Como poderá outro alguém gostar a dobrar? Quero deixar-te apenas escrito e não mais apagar-te do meu passado mas preciso de virar a página... e não consigo... e com isso magoar-nos-ei dia após dia até ao declínio dos bons afectos qua ainda nutrimos um pelo outro... Não tem de ser necessariamente fácil mas eu quero-o muito e preciso... quero tentar e "está feito"!

Paulo Agostinho disse...

A personagem não consegue. Sendo fictícia, também não tem esse poder.
Há quem ame a dobrar? Se a vida fossem só palavras que se juntam numas linhas era tudo mais fácil. As palavras escritas encaixam os vértices que nós temos, sem magoar ninguém. Mas viver é como escrever um romance aprendendo ao mesmo tempo as primeiras letras e a gramática. Pensamos que temos o texto perfeito e afinal a frase não soa como a imaginámos, como a sentimos quando se criou dentro de nós.
Que quer tudo isto dizer? Provavelmente pouco, porque são palavras apenas.
O resto não é fácil, mas é preciso. Preciso tentar e "está feito." O difícil é saber como.

Anónimo disse...

História de um amor vivido na cidade dos estudantes... Coimbra presta-se a histórias de amor. Eu que o diga! Vivi momentos de grande alegria e sentimentos de grande intensidade (da minha parte, creio) nas margens do Mondego. Mas também vivi desilusão, desafecto, tristeza e desespero. Por isso, ainda hoje nutro pela bela Aeminium sentimentos de alguma ambiguidade.