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sábado, maio 02, 2009


A Professora chegou junto a mim e disse "a A. deve precisar de óculos", porque encostava a folha ao nariz e mesmo assim soletrava, não era só a leitura lenta, era a língua a tropeçar nas letras quando antes "lia bem", ou seja, quando antes corria pelo texto apenas tropeçando aqui e além numa vírgula ou na difícil escalada de uma palavra complicada. E eu respondi sem pensar "está bem, vou ver se resolvo isso", como se estas coisas fossem simples e se resolvessem só porque eu o afirmava. Que querem que vos diga? É que nem coloquei a hipótese. Chamei a A. e quando lhe disse "parece que precisas de óculos", ela respondeu "não, não preciso", naquele jeito habitual de teimar e contrariar que ela tem, uma brincadeira que geralmente termina com ela a aceitar o que se diz. Insisti "precisas de óculos" e ela "não, não preciso"; "vês mal", "não, não vejo", "disseram-me que nem as placas das matrículas já consegues ler", "e para que preciso eu de as ler?"; "deixa-te disso, andas a ver mal", "oh, e que importa, mais um ou dois meses e termino o curso, depois já não vou precisar de óculos". E eu ri-me do ridículo deste comentário. Ri-me e não olhei para as entrelinhas, ri-me e afinal era eu a precisar de óculos. De certeza que me lembrei da passagem do Livro, "bem-aventurados os pobres de espírito", só não percebi que se referia a mim. Mesmo com a palavra a soar, tão forte, o vibrar de um sino, metálico. Voltei a insistir, algum tempo depois. "Já trataste dos óculos?" E ela "já fui ao oftalmologista." "E...?" "E vou ter de usar óculos." "E quando estão prontos?" "Ainda demoram. Ainda falta a outra consulta." "Mas qual outra consulta?" "A consulta para ver qual é a graduação dos óculos." "Mas, não fizeram logo isso?" "Não." "E quando é a próxima consulta?" "Oh, ainda demora. Pela caixa demora sempre meses." Meses passados (dois, talvez) e eis que falo com o pai. E digo-lhe "a A. precisa de óculos", como se o senhor não fosse capaz de o perceber sozinho. E o senhor pára junto à porta (já estava de saída). Momentos antes tinha sorrido de orgulho - "a sua filha é a melhor da turma", agora parou e foi outro tipo de orgulho que encontrei no rosto. "Eu sei", respondeu, "mas falta o dinheiro para os comprar; só temos a minha reforma e ainda há pouco comprei óculos também para a mãe e a caixa não comparticita". Que lhe poderia eu dizer? Banalidades. Lembrei-me do meu "está bem, vou ver se resolvo isso" a verter confiança e nem sei o que pensei. Quer dizer, até sei, mas... Que querem que vos diga? Afinal a A. não é tola nem pobre de espírito, esse papel coube-me a mim. Ela é apenas pobre.

2 comentários:

Kris disse...

E mesmo assim, essa menina bonita tem sempre um sorriso doce no rosto pronto a confortar e alegrar-nos quando nós, perante algum egoísmo desapercebido, julgamos estar mal... Apesar de todas a contrariedades, é a melhor aluna a nível global daquela turma tão problemática em termos de background e falta de horizontes! Mas, como podemos, afinal, julgá-los? Nós, a quem a vida acabou por sorrir de uma forma bem diferente e nem perantes as situações nos damos conta de tal... É a A. que agora precisa da nossa ajuda... e uma ajuda tão pequenina... Ainda há pouco na aula a observava e pensava em tudo isto... Os óculos estarão para breve e é justo que sejam o menor dos problemas!!!

Paulo Agostinho disse...

Os óculos estão mesmo para breve, amanhã é dia de ir ao oculista!!