N. acabou de chegar. Não de outra escola, nem de outra cidade. De outro país. Filha de portugueses, fala português com sotaque de emigrante e é bonita, alta e simpática. É, pois, a atracção de uma escola onde as novidades são poucas. Pelo menos é o centro das atenções do 'lado' masculino da escola. Chega para fazer o 9º ano.
Ficamos a conversar no final da primeira aula. Os seus olhos brilham quando fala. O sorriso tem vestígios de infância que resistem ainda ao assalto do crescimento.
Quis saber o que tinha estudado. Pois bem, quase nada. Nunca teve História, em 8 anos de escolaridade. Teve contas, trabalhos manuais, ginástica, luxemburguês, alemão, dois anos de francês (não havia mais línguas inúteis para aprender?, pensei eu). Só este ano começaria a estudar inglês (um tal de sócrates deve estar cheio de arrepios, neste momento) e História. O seu vocabulário é limitado, parece restringir-se aos termos correntes. Daí que termos como século, órgão, censura, meios de comunicação, lhe sejam estranhas. Entre muitas outras. Estas soube-as perguntando directamente, pois estavam nas questões do teste diagnóstico. E só disse que não as conhecia após hesitação. Após algum tempo de conversa depois de nova aula (aquilo que a a sra ministra não considera trabalho, pelos vistos, e eu, em parte, também não - considero algo mais que isso, ou diferente disso, embora essencial para que o trabalho corra bem), N. confessa-se assustada. Sente que vai ser muito difícil estudar aqui, acompanhar as aulas. Disseram-lhe, antes de vir para cá, que estava bem preparada. Mas afinal descobriu que não está. E numa aula de revisão de francês, onde apenas se abordou aspectos básicos de iniciação da língua, começou a chorar porque à sua volta o mundo parecia comunicar em códigos indecifráveis.
Numa ficha diagnóstica, pedi-lhe que escrevesse um texto. Não defini tema, não importava para o caso. Precisava de ver como escrevia em português, língua que nunca estudou. Deu erros, como seria de esperar. As frases apareceram construídas com alguma dificuldade, fala colocada em papel. Nada que não resolva com leitura e escrita e mais leitura e escrita. E muita vontade. O texto que nasceu nesse exercício tinha três ou quatro linhas que expressavam exactamente os medos que já antes tinha confessado. Medo de falhar perante a turma, medo de não conseguir aprender, de se sentir perdida, desajustada, ridicularizada por adolescentes que já antes se tinham rido quando se apresentou nas aulas só com cadernos quadriculados, à moda luxemburguesa. Sem o saber, deu o primeiro passo para escrever bem. Procurou palavras para o que sentia (curiosamente, saltitando entre estações de rádio, ouvi essa definição de escrever: encontrar palavras para os sentimentos. Concordo.)
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Entretanto já comprou cadernos de linhas para ver se se habitua e esquece as folhas de quadradinhos. É pena. Seria a sua imagem de marca, uma forma de se destacar. Só que o que ela quer, neste momento, é precisamente o contrário, mergulhar no anonimato fundindo-se com a multidão que enche a sala. E esse poderá ser o seu erro, porque se isso suceder, começará a ser vista como mais uma aluna, sem as diferenças que a tornam um caso especial.
1 comentário:
E quantas crianças portuguesas caem de pára-quedas em escolas de países estrangeiros? Tive uma amiga de infância que passou por essa experiência. Aos 14 anos foi para o Luxemburgo precisamente e lá teve de arranjar maneira de se adaptar.
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