"Chegado ao fim da minha vida de pecador, enquanto velho encanecido como o mundo, à espera de me perder no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta, participando na luz incomunicável das inteligências angélicas, retido agora pelo meu corpo pesado e doente nesta cela do querido mosteiro de ..., disponho-me a deixar neste velo testemunho dos admiráveis e terríveis eventos a que na juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem ousar tirar daí nenhum desígnio, como para deixar àqueles que hão-de vir (se o Anticristo os não preceder) sinais de sinais para que sobre eles se exercite a prece da decifração."
(Adso - U. Eco, O Nome da Rosa, Lisboa, Difel)
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Trocando o pergaminho pelo teclado, e esquecendo o receio do Anticristo (que certamente nada terá que fazer nesta terra), poderia fazer minhas as palavras do monge. A idade é já a de um velho, num país onde aos 30 se encontram já fechadas as portas de quaisquer oportunidades. A cela não é fria e húmida como a que se esperaria encontrar num mosteiro alemão do século XIII, nem tão estreita, mas também não oferece nenhum claustro para repouso e meditação. A cela hoje estende-se às ruas e à escola e à própria casa (que nem própria é) e aos cafés de uma terra distante de todo o anonimato. Não há toques de vésperas e matinas que perturbem o sono, mas também não há rezas para fazer. Hoje os murmúrios são blasfémias de raiva e desprezo contra os toques e as regras e a corrupção e as injustiças e as falsidades deste grande convento que é a vida em Portugal. Já foram murmúrios de ironia. Mas a ironia exige esperança e fé que tudo mude. Nada mudará, não aqui, onde a mentira é o verbo e o que vale é o ritual sem razão conduzido em nome de uma figura de pau oco.
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Chegado pois ao fim de uma vida de pecador, olhando para trás encontro vestígios de edifícios que quis construir, mas que, por escolha ou incapacidades várias, não concluí. E dessa arqueologia pessoal surgiram, sob o pó e a terra, achados fragmentados desses edifícios:
O sarcófago de uma guitarra que nunca aprendeu o alfabeto e é hoje tão muda como no primeiro dia.
Cores em bruto de imagens que a mente sonhava e que as mãos recusaram perpetuar no papel.
Palavras, notas, rascunhos, impressões caseiras de estudos que a ninguém interessa e que não dão nem alegria nem € (se ainda desse este último...)
2 comentários:
A música exige esforço e muita dedicação. O desenho também e a literatura, já dizia o outro senhor acerca do génio, é 99% transpiração e 1% inspiração... O reconhecimento artístico também não surge assim de um dia para o outro - a menos que tenha uma máquina de relações públicas a trabalhar 24/7 para esse efeito... Há que encontrar forças para retomar essas formas de expressão artística, mesmo que sejam apenas e só para "consumo interno" - para o autor e para os amigos mais próximos.
Ou, se não há real vontade de desenvolver essas competências, mais vale guardar tudo numa gaveta, senão esses objectos tornar-se-ão em constantes lembranças de apatia, preguiça, falhas de carácter e da espiral de mediocridade em que pode transformar-se a vida. "Longe da vista..."
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