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sexta-feira, maio 12, 2006

educação para quê?

O mundo das escolas é - acreditem - um mundo à parte. E o mundo que existe para os legisladores da educação em Portugal (e na Europa, porque quem legisla por cá não tinha capacidade para mais senão para copiar o que fizeram ingleses e franceses) é algo que nada tem a ver com a vida real. Os textos de Nuno Crato, Maria Filomena Mónica, Pacheco Pereira, António Barreto e Vasco Pulido Valente partem do princípio de que o objectivo da educação é ensinar, instruir, fornecer conhecimentos sobre variadas áreas (da literatura à matemática, passando pelas ciências naturais e humanas). Infelizmente, o objectivo da educação, para quem legisla, é melhorar os dados estatísticos do ensino em Portugal. Ou seja, é fazer desaparecer das páginas das estatísticas os analfabetos e reduzir o abandono escolar. De preferência de forma rápida e barata. Claro que fazer isso, sem investimento, sem diferentes tipos de ensino, ou seja, sem um verdadeiro ensino técnico-profissional de qualidade (as actuais escolas profissionais são de duvidosa qualidade e limitam-se a passar certidões de equivalência ao 9º ou ao 12º ano) e mantendo um mínimo grau de exigência é impossível. Portanto, como o objectivo tem de ser cumprido, é forçoso que se diminua esse grau de exigência. A filosofia da educação que se adoptou encaixa perfeitamente neste modelo. É uma filosofia curiosa: o professor não ensina, ajuda o aluno a aprender. Cada aluno é um caso e deve ser sujeito a uma avaliação individualizada, que tenha em conta o seu ambiente socio-cultural, as suas aspirações, as suas aptidões e os seus gostos. O ensino (perdão, a aprendizagem) deve ser "divertida" e "significativa", pelo que tudo o que seja aborrecido e complicado deve ser excluído ou desvalorizado, o mesmo acontecendo com tudo o que não revele uma utilidade imediata. Um dia perguntei a umas estagiárias de inglês por que motivo falavam tanto de Inglaterra e dos EUA e tão pouco de inglês. Responderam-me que como os alunos daquele meio provavelmente nunca iriam para Inglaterra ou para os EUA não precisariam de falar inglês, pelo que era preferível que aprendessem dados de cultura geral sobre esses países (para quê, já agora?).
Como não se pode ser exigente - ponto que muitos professores demoraram (e demoram) a assimilar - foi necessário mudar a legislação sobre transição de reprovação de alunos de forma a tornar virtualmente impossível reprovar um aluno.
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Primeira medida. A avaliação deve ser entendida não numa perspectiva anual, mas numa perspectiva de ciclo. Logo, as retenções no meio de um ciclo (por exemplo, no 2º, 3º, 5º, 7º ou 8º anos) só devem acontecer como uma excepção à regra, que é a da transição. Para que um aluno nesses anos "não-terminais de ciclo" seja retido, o conselho de turma deve demonstrar que ele revela um atraso de tal forma elevado que não poderá ser corrigido até ao final de ciclo. Como a futurologia é uma arte pouco divulgada entre nós, torna-se difícil demonstrar tal possibilidade, sobretudo se o pai do aluno tiver (ou for) um razoável advogado.
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Segunda medida: Como muitos profs teima(va)m em chumbar alunos e muitos pais aceita(va)m esse facto, o legislador deu um novo passo em direcção ao abismo. A retenção do aluno faz-se agora tendo em conta as "competências finais de ciclo definidas para cada disciplina" e não sobre conteúdos dessas disciplinas. Confuso? Elementar, meu caro Watson. É fácil demonstrar que o aluno não aprendeu os conteúdos de uma disciplina, basta para isso mostrar as notas dos testes e os registos negativos da participação oral. Ora, acontece que os conteúdos das disciplinas mudam com o progredir dos estudos científicos nas diversas áreas, algo que para o legislador é confuso e perturbador. Portanto, como esse conhecimento mais cedo ou mais tarde vai ser ultrapassado (veja-se as transformações na gramática portuguesa que estão a decorrer neste momento), não vale a pena incomodar as crianças com ele. É preferível dotá-las de "instrumentos de construção do próprio saber", as tais "competências finais de ciclo". Estas competências são coisas vagas. No meu caso, por exemplo, limitam-se a três: situar no espaço, situar no tempo, contextualizar os acontecimentos. Como é que isso é possível sem ter conhecimentos é algo que me transcende. Mas não consigo provar (se um razoável advogado o exigir) que o aluno não as adquiriu ou não as vai adquirir até ao fim do 9º ano.
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Terceira medida: como ainda assim haveria retenções, tomou-se outra decisão interessante. O número de negativas (perdão, hoje diz-se "classificações inferiores a três" ou "níveis inferiores a três") já não é automaticamente factor de reprovação. Assim, a criança pode ter três negativas, quatro, cinco ou todas, que a sua transição pode e deve ser ponderada pelo conselho de turma, só sendo retida após segunda reunião, caso não haja unanimidade na primeira reunião em relação à dita retenção. Vemos assim alunos passarem com 7 negas e outros reprovarem com 4. E com argumentos curiosos. Um destes anos, passou-se uma aluna "porque já tinha reprovado noutros anos desse ciclo" e reprovou-se outra, da mesma turma, porque nunca tinha reprovado até ali, o que era obviamente bem feito, ninguém a mandou ser sempre uma aluna razoável e baixar agora. O ambiente socio-afectivo (algo que nos chega geralmente através de vias indirectas) e a idade tornam-se factores a ponderar. É também aconselhável manter o aluno na mesma turma, de forma a evitar o trauma da mudança e o desajustamento etário com alunos de idades inferiores. Como foi precisamente na companhia da sua turma actual que o aluno tirou más notas, não vejo porque é que a manutenção do convívio lhe possa vir a ser benéfica, mas há concerteza estudos de pedagogia que o demonstram cabalmente.
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Já estou cansado de escrever sobre isto e ainda tantos casos para dizer. Solução? Regressar ao ensino que nós tivemos, nos anos 80, antes da desgraça levada a cabo não por vários governos, mas por uma equipa que se manteve em todos os governos no ministério de educação, e que era liderada por Ana Benavente (entrou, se não estou enganado, com Roberto Carneiro e só saiu recentemente). Regressar às regras de disciplina, em que um aluno reprove por faltas (sim, já não acontece senão a partir do 10º ano), em que três negativas impliquem reprovação imediata, em que tretas como Área de Projecto e Estudo Acompanhado desapareçam do currículo e se coloquem mais carga horária para as disciplinas que importam. Criar escolas profissionais de jeito, exigentes, bem equipadas, com bons professores. Não ligar à estatística do analfabetismo, porque na prática ele continua a existir, embora ao fim de 9 anos na escola.

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