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segunda-feira, dezembro 03, 2007

Os loucos IV

Triste sina a de ser quem não se é. Uma mente, um coração, uma alma, chamem-lhe o que quiserem, e o corpo errado. O desejo trocado. Na adolescência, a imagem no espelho confundida com a idealização do desejo. Narciso? Não. Narciso, o pobre Narciso, apaixonou-se pelo seu reflexo. E morreu assim. Teve sorte. Além disso, os tempos eram outros, o Olimpo e a imaginação dos homens antigos eram mais livres e acolhedores. Pelo menos nessa questão dos amores trocados. O rapaz era capaz certamente de contestar estas palavras. Nem os amores estão trocados, ele sente-os como certos, logo o erro não estará nele, mas no mundo que o rodeia. É um daqueles casos em que todos os outros estão errados, não ele.As angústias passadas nunca foram reveladas. Mas não terão sido poucas. Desde logo, a dificuldade de aceitar como se é e de aprender a olhar o mundo visto ao espelho quando todos os outros o continuam a ver naturalmente. A esquerda dele a direita dos outros, o sim a soar não aos outros, o riso dos outros a gerar lágrimas nele. Depois, quando esse processo de auto-aceitação ficou feito, veio o outro problema. O de explicar ao mundo com se é e fazer o mundo aceitar. Não tinha sequer de apoiar, bastava pelo menos que ignorasse a questão, que aceitasse esse facto como se aceitam os olhos azuis, os caracóis, a voz rouca, o frio do Inverno, a escuridão das noites sem luar e todas as outras loucuras (nada mais do que desvios de uma norma que todos parecem contestar mas que todos aceitam e aplicam, mesmo contra si). A verdade é que os mais próximos aceitaram pior. Mas, curiosamente, entre os loucos o problema nem se colocou. Mesmo que haja excepções, não foram traduzidas em gestos ou palavras. E é quase certo que o rapaz encara o asilo de loucos como um dos lugares mais sãos que poderia encontrar, um abrigo onde continua a não poder ser quem é, onde continua a ser uma mente, um espírito, uma alma, chamem-lhe o que quiserem, escondido no corpo errado, mas onde ninguém lhe lembra do que deveria ser.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nossa, tem certeza que foi você mesmo que escreveu o texto do sorriso postado atrás? É que esse texto aqui está muito bom enquanto o outro é mauzinho, mauzinho. Que idade você tinha quando escreveu o texto do sorriso, doze anos?!