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segunda-feira, dezembro 03, 2007

Os loucos III

O homem entra na sala. Um homem alto, lembrando uma marioneta desajeitada, os pés tropeçando no vazio, hesitando antes de pousarem no chão, o olhar indeciso, saltitando por toda a divisão, não à procura de alguma coisa, mas procurando evitar um contacto mais longo com outro olhar. O homem encontra um canto onde se consegue isolar. Senta-se, as pernas longas bem juntas, o tronco um pouco estendido para a frente. Os olhos pousam no chão, cansados da fuga anterior, repousam, ganham fôlego. E começam a erguer-se novamente. Ninguém lhe prestou atenção. Os restantes loucos derivam isolados ou balbuciando frases ocas em grupos. Os olhos são claros, e brilham de uma forma que não se esperaria na figura baça. Há ali uma fogueira interior que arde, queima e liberta aquele brilho. Esse fogo é a sensação de abandono e desadaptação. O homem não pertence aqui. As frases que ele balbucia não soam iguais às dos outros. O que lhe desperta a atenção é para os outros algo de estranho e hermético. Os outros pensam com palavras, ele pensa com números e relações de valores. Por isso as palavras lhe surgem com dificuldade. As perguntas que faz revelam uma inocência típica de um estranho. Para que serve…? Como se faz…? O que significa…? E, complementando as frases interrogativas, realidades tão claras como o amanhecer e o entardecer e a água da chuva e do mar junto à ilha verde. Dúvidas de criança. A cada momento esperamos que pergunte “de onde vêm os bebés?”
Quando encontra alguém com quem consegue conversar, convertendo mentalmente equações em orações antes de falar, o tema é sempre o mesmo. E nessa altura sentimos que o problema dele não é o de não pertencer ali, é algo mais profundo e dilacerante. Não é um fogo, mas uma chaga em carne viva, escorrendo sangue numa hemorragia imparável. E ainda assim os olhos brilham quando fala de outra terra, para onde deseja ir, de onde veio, e da filha que lá deixou. “Há muito tempo que não a vejo, Tenho saudades da minha filha, há muito tempo, há mais de dois dias, quase há uma semana. Tenho de ir. No fim do dia, hoje é sexta, não é? A minha filha, linda, não a vejo e sinto saudades.” E o interlocutor “era bom que fosse sexta, mas ainda é quarta-feira” e o brilho do olhar esmorece, a voz mais ténue por uns momentos, ganhando forças para continuar, como os olhos no chão recuperando o fôlego. “É que não a vejo há tanto tempo. De certeza que não é sexta-feira?”, e o outro já nem estranha a pergunta infantil. “de certeza, é quarta-feira.” “Mesmo assim, mesmo assim vou a casa. É uma viagem longa, vou pedir autorização e de certeza que me deixam ir, se lhes explicar que vou ver a minha filha, é impossível que não me deixem sair mais cedo, têm de compreender.” Enquanto fala, o seu braço direito retorce-se involuntariamente, a palma da mão vira-se para cima e os dedos curvam-se, formando uma concha. Este gesto, de tão habitual, tornara-se já conhecido, fazendo rir quem o observa. Mas desta vez o outro não se riu. Limita-se a encolher os ombros. “Por mim podes ir, creio que ninguém se importa.” E levanta-se, subitamente incomodado pela conversa, pois é do conhecimento geral que a filha não existe a não ser na mente do homem, um desesperado elo que ainda o liga ao mundo que já não é o seu.
O homem parece nem notar a súbita partida do seu companheiro de conversa. “Há tanto tempo que não a vejo, que vontade de a segurar, assim” e de novo o gesto a repetir-se, traços que restam de carinhos passados.

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