«Não quero polemicar com o Ruben de Carvalho. Quero explicar o que se passou e defender a minha tese («revoltante», segundo o Ruben) de que a «Esquerda» exerceu, ou tentou exercer, uma ditadura «intelectual» durante a ditadura do «Estado Novo» e para lá dela. Mas convém, primeiro, precisar que a força agente e movente por detrás do esforço para dominar a vida cultural portuguesa foi o Partido Comunista (...). Ora, nessa matéria, a política do Partido Comunista evoluiu de acordo com a política e os interesses da URSS e, em menor grau, de acordo com a nossa situação doméstica. Até 1946-47, o PCP seguiu uma «linha» coincidente com a estratégia da «frente popular», que Estaline recomendava aos inimigos do nazismo, do fascismo, de Franco e do mais manso e conservador regime de Salazar. No seu último livro, A Arte, o Artista e a Sociedade (um exercício contraditório e primário de reflexão estética e também uma «limpeza» histórica de antigas aberrações), Álvaro Cunhal menciona a sua polémica com Régio na Seara Nova, em Maio de 1939 (ou seja, antes do Pacto Germano-Soviético), mas com o amor da verdade que sempre o caracterizou esquece convenientemente um artigo publicado em 1954 na revista Vértice, «Cinco notas sobre a forma e conteúdo» (...), sob o pseudónimo de António Vale (...). Porquê? Porque, em 1939, se tratava apenas de combater os «formalistas», como Régio ou Gaspar Simões, cuja obra literária ignorava a resistência ao «terrorismoda burguesia» (Dimitrov).
Esta relativa benevolência acabou, no entanto, em 1947-1948, com a extensão do império soviético à «Europa do Meio» e o princípio da «guerra fria». Daí em diante, o PCP resolveu impor a mais dura ortodoxia «jdanovista» e atacou virulentamente os heréticos. Em 1952, quando o responsável pelo «sector intelectual», Mário Dionísio (...) se demitiu por não concordar com as instruções que lhe davam, foi expulso do «Partido» e a notícia da expulsão publicada no Avante (o que, como o Ruben bem sabe, equivalia a uma pura e simples denúncia à PIDE). E, em 1954, apareceram as «Cinco Notas» de Cunhal, que recusavam qualquer mérito artístico aos «intelectuais», que na «pintura, na música, na poesia» não estivessem ao lado da «classe ascendente», o proletariado, e se limitassem «a falar de si e dos seus mesquinhos problemas». Não estar ao lado do proletariado, isto é, não obedecer ao «Partido», revelava evidentemente «desorientação, degeneração, corrupção, anarquia, egoísmo, devassa sensualidade, pavor pelo futuro» (ecos de Hitler, não é?). As «Cinco Notas» também censuravam o «desviacionismo» de Lopes Graça (...) declarando expressamente que ele «reduzia» a música a um mero conjunto de «acrobacias técnicas». Para se avaliar o critério do Dr. Cunhal, bastará dizer que, na sua esclarecida opinião, «as três jóias» do romance português da época eram A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, Fanga de Redol e Esteiros de Soeiro Pereira Gomes.
Em 1956, porém, veio o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, a admissão (e condenação) dos crimes de Estaline e o «Degelo». E a política «intelectual» do Partido Comunista, fatalmente, mudou. Agora - como mais tarde na deténte - o PCP aceitava no amplo seio do «antifascismo» (que ele, na prática, dirigia), os «fraccionistas» dos anos 50, os companheiros de caminho e os «idiotas úteis», sem se preocupar muito com as idiossincrasias estéticas de cada um. Mas nas editoras, nas revistas e nos jornais (que ele criara ou «infiltrara»), não deixou de perseguir, por acção e omissão, quem não se resignava à sua primazia e, sobretudo, quem, mesmo à esquerda, aberta ou terminantemente se opunha ao «socialismo real» (ao «sol soviético») ou liminarmente negava a validade «científica» e «metodológica» da teoria de Marx, como interpretada pelos epígonos de confiança.
A política «intelectual» do PCP reflectia, como é óbvio, a sua política geral. O «Partido» não cessava de pedir ajuda aos «democratas» e até aos «homens de bem»: e adoptava com entusiasmo católicos e «sacerdotes» da espécie «progressista». Mas não lhes admitia qualquer independência. Grande parte da sua celebrada luta - antes de depois do 25 de Abril - teve por fim eliminar os indivíduos ou grupos que, sendo contra a ditadura, se não submetiam ao seu comando: os velhos republicanos e a Maçonaria; Mário Soares, a ASP e o PS; Jorge Sampaio e o MAR; a breve confluência de Soares, Sampaio e alguns católicos em O Tempo e o Modo; a cisão maoísta de Francisco Rodrigues (a FAP, antepassada da UDP); o MRPP e por aí fora.
A maneira como o PC tratou os «intelectuais» não é, assim, uma excepção. Os «intelectuais» de esquerda que persistiam em defender a sua independência, pagavam caro essa estúpida veleidade, como Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira, Alexandre O'Neill, Mário Cesariny ou Jorge de Sena. E os de direita, como Agustina, Nemésio ou Fernanda Botelho, oficialmente não existiam. E cito só escritores e, dentro dos escritores, os mais ilustres, porque não tenho espaço para a enorme lista da gente que o PC abafou e removeu de cena.
Em compensação, o «Partido» promovia as mediocridades, que entre o pau e a cenoura, escolhiam a cenoura, e a quem ele esmolava «prestígio» e, às vezes, prémios e um mendaz «reconhecimento internacional». De facto, nada mais fácil, para a máquina comunista na URSS, nos «satélites» e no Ocidente, do que fabricar um génio. Imaginemos, a título de ilustração, que Fernando Namora produzia um livro não inteiramente idiota. Em Portugal, a «crítica» cobria o sujeito de elogios e um júri de «amigos» avançava com um prémio. Depois, vinham as traduções em russo, em romeno, em búlgaro ou em curdo. A seguir, as traduções em italiano e francês, por influência dos camaradas locais e algumas linhas de louvor na «boa imprensa», por caridade dos «companheiros de caminho». E, de repente, o execrável Namora aparecia no circuito dos seminários, encontros e congressos, com a etiqueta de sumo representante da literatura portuguesa. Saramago foi o último beneficiário deste santo sistema.
Não Ruben, a ditadura do PC sobre os «intelectuais» não é invenção minha; e o sumiço dos «intelectuais de esquerda» e do horrível poder que os sustentava é definitivo.»
14/02/97
in Vasco Pulido Valente, Esta Ditosa Pátria, Lisboa, Relógio d'Água, 1997
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