Seguidores

sábado, dezembro 27, 2008

*Baseado em factos verídicos

Sem saber como lá fui parar, a verdade é que dei por mim numa loja de artesanato, algures na Galiza. Pelo menos julgo que é a Galiza. A vendedora fala castelhano, mas mesmo assim pressinto que estou na Galiza. Pergunto por um qualquer objecto. O vendedor (que aconteceu à vendedora?) diz-me que não tem, que já teve, mas que agora deixou de receber. Creio que se trata de réplicas de estatuetas pré-históricas, como aquela gordinha de Willendorf. Mas também poderia ser uma escultura medieval, a memória ficou algo turva. Tiro um cartão do bolso, na minha boa vontade de tentar ser útil. Entrego-o ao vendedor. Falo um castelhano péssimo, mas faço-me entender. O cartão tem o contacto de um fabricante de estatuetas, português, que recomendo ao vendedor.

O homem olha-me e agradece, mas que tem receio de contactar com ele. "Porquê?", pergunto eu. "Não sabe que este homem agora vive com um taxista?", e mostra-me uma fotografia do artista (que eu reconheço, embora não me lembre de alguma vez o ter visto) de camisa amarela, ao lado de um outro homem, de camisa florida, azul-bebé, encostado a um carro, que seria o dito taxi. O absurdo da situação escapou-me, na altura, e aceito o argumento do vendedor com naturalidade, não sei bem porquê.

Tento ajudá-lo a contornar a sua dificuldade, perguntando se não teria na loja alguém em quem confiasse, que pudesse estabelecer o contacto por ele. Passa a vendedora que vira inicialmente e o vendedor aponta para ela. Mas não parece muito convencido. Será que não confia nela? Mas que confiança especial é necessária para fazer (provavelmente por telefone) uma simples encomenda? Estas dúvidas, porém, ponho-as agora, em que tudo me parece absurdo, não na altura.

O silêncio é cortado por uma música que surge do nada e invade a loja, crescendo. Abba?!




Sábado de manhã. Os Abba cantam a partir do telemóvel pousado na minha mesa-de-cabeceira. Onde estava eu com a cabeça para pôr semelhante toque? E o relógio a dizer "é tão cedo" na sua linguagem de algarismos.

Olho para o visor: Cátia. A minha prima. Mas que me quer ela a esta hora?

"Estou?"

Eu sou mais directa, e com uma voz ensonada e muito irritada, limito-me a "Diz!"

"Acordei-te?"

Só me faltava esta. Claro que acordaste... "Diz!!", agora num tom mais duro.

"Podes ir ter ao meu carro? Tocou aqui uma senhora a dizer que o marido me bateu no carro. Eu bem sentia que ele não tinha ficado ali bem."

"Ali" era o fim de uma curva, onde sempre ficaram carros estacionados sem qualquer problema. Mas a minha prima, desde o momento em que puxou o travão de mão e trancou o carro que o sentiu mal estacionado. E, pelos vistos, tinha razão.

"Já lá vou ter."

Visto-me à pressa, prendo o cabelo, calço umas sapatilhas e saio a correr. Junto ao carro da minha prima está outro carro, quatro piscas ligados, duas crianças no interior e um casal cá fora. Deviam ter cinquenta anos, ou pelo menos vestiam-se como tal. Ou foram pais muito tarde ou os putos são emprestados (na melhor das hipóteses), porque são ainda pré-adolescentes.

Da minha prima nem sinal.

"A menina é a dona do carro?"

"Não, sou a prima da dona."

A mulher olha para mim com ar irritado. Isto de facto soou um pouco mal.

"Sou mesmo a prima da dona, ela ligou-me para vir também, deve estar aí a chegar."

Olho para trás, mas nem sinal da minha prima. O rosto da senhora amenizou-se, mas mantinha um ar de preocupação. O marido olhava para a amolgadela que tinha no carro dele, depois olhava para o carro da minha prima, intacto, e voltava para a amolgadela. Não consegui perceber se ele estava aliviado ou irritado, porque o seu rosto tinha a expressividade de um actor de novela portuguesa.

"Olhe, a culpa é toda minha", começou a contar a mulher, agitando muito as mãos enquanto falava. "É minha porque vinha a conversar com o meu marido, a dizer-lhe para ele ter cuidado, ainda há pouco ouvimos na rádio falar de um acidente e eu vinha a dizer-lhe 'vai com atenção', porque hoje em dia todo o cuidado é pouco e é preciso mil olhos e mesmo assim as coisas acontecem..."

Começo a compreender a causa do acidente. Com tanto palavreado até eu começo a perder o norte.

"... e ele até nem tem o hábito de acelerar, é muito cuidadoso, mas é distraído, e já não é a primeira nem a segunda vez que apanhamos um susto. Claro que às vezes são os outros, anda por aí muita gente que não devia ter carta, são uns criminosos, mas a esses a polícia não vê, mas a nós ser for preciso mandam logo parar e vasculham tudo na caça da multa."

Interrompo-a. "Vem lá a minha prima." E, de facto, lá vinha. Mas não parecia vir de casa, parecia que passara ainda pelo cabeleireiro e pela esteticista. Não admira que tivesse demorado esta eternidade. É que a minha prima é do género de rapariga que põe baton e perfume antes de fazer um telefonema. Bom, eu cá costumo tirar os óculos, mas já é um reflexo condicionado...

Com a chegada da minha prima, a senhora (após as necessárias saudações) recomeça o seu conto, por outras palavras, mas que me dispenso de transcrever aqui na íntegra, preferindo ir directamente ao assunto (as reticências representam longas divagações sobre o tema colocado entre parêntesis):

"Quando o meu marido vinha a fazer a curva ... (velocidade) eu vi o carro estacionado (estacionamentos e multas; "não leve a mal, menina, que o seu está bem estacionado, e blá blá blá) e gritei "cuidado" ... (histórico de todas as situações anteriores em que o grito de cuidado foi fundamental para a salvação de inúmeras vidas) e o meu marido assustou-se ... (aqui a senhora, não sei bem por que caminhos, chegou à história de uma vizinha que caíra das escadas) e deu uma guinada para se desviar, mas pensou que eu tinha visto um carro a vir em sentido contrário ... (o sol da manhã e o uso de óculos escuros; o preço das consultas de oftalmologia; as listas de espera) e em vez de se desviar para o meio da estrada, desviou-se para a berma e bateu no seu carro, menina."

Terminado o longo relato, fomos ver os estragos. De acordo, os senhores foram honestos e sérios. Poderiam muito bem ter ido embora sem dizer nada, como a maioria faz. Mas a verdade é que, neste caso, realmente poderiam ter ido embora, porque os danos no carro da minha prima só podiam ser detectados com recurso a lupa. Tenho a sensação que ela nunca daria conta que aqueles riscos (ténues como algumas gravuras de Foz-Coa) ali estavam.

O senhor sugeriu o preenchimento dos papéis amigáveis. A minha prima, no entanto, teve o bom senso de sugerir que não valia a pena o trabalho. Os estragos no seu carro eram mínimos, por isso não valia a pena envolver as seguradoras no caso. "Cada um trata do seu", rematou.

Quando pensei que tudo estaria resolvido, eis que toca o telemóvel do senhor. Este, como não podia atender, passa-o à mulher "é a tua irmã" e volta a olhar, comovido, para os ferimentos do carro. As duas crianças dão sinal de vida e decidem sair para ver os estragos. A conversa da senhora ao telemóvel arrisca-se a acordar a vizinhança. Naquele tom, poderia falar directamente com a pessoa, sem recurso a máquinas. Olho em volta e deparo-me com o vizinho do terceiro esquerdo a espreitar da janela e a vizinha do segundo direito do prédio da minha prima a olhar debruçada no gradeamento da varanda, acabada de acordar. E, no prédio em frente (ou seja, no meu), o palerma do engenheiro a olhar para a vizinha do segundo direito, logo ele que é tão metediço e se costuma envolver nestas questões públicas. Hoje, que até dava jeito que viesse até cá, fica pasmado a olhar para os ombros nus e o colo de bronze da sedutora Julieta.

“Ai, a sério? Morreu? Mas como?” – ouço a mulher dizer ao telemóvel, antes de se virar para o marido e “o Ernesto morreu.”
“Qual Ernesto?” O homem continuava de olhar preso nas amolgadelas.
“O meu primo, o filho da minha tia Ermelinda.”
“Ah, está bem.”
Pausa. Olho para a minha prima. A minha prima olha para mim. As crianças olham para a mulher, a mulher para o marido, o marido para o carro. Finalmente, o marido liberta-se do transe e pergunta “e morreu como? Estava doente?”
“Não. Matou-se, vê lá tu.”
“Matou-se?”
“Sim, foi para o meio do monte e matou-se, enforcou-se numa oliveira ou lá o que é.”
“Olha que chatice.”
Continuo a olhar para a minha prima e ela para mim. Isto não está a acontecer. Definitivamente, não está a acontecer. Estava eu tão bem a dormir.
A mulher termina a conversa ao telemóvel, desliga-o, devolve-o ao marido e vira-se para as crianças.
“Já viram que desgraça, meninos? Foi o acidente, agora esta notícia da morte do primo Ernesto. E nós que saímos de casa descansados, para ir ver a avó ao cemitério.
“Bom, esperavam mais uns dias e viam também o Ernesto”, pensei eu. Mas não disse.

3 comentários:

Anónimo disse...

Galiza?! bem digo que escondes metade da tua vida para que a outra metade não desconfie...

Prima Cátia?! Prima Cátia?! Hahaha! Essa foi de mestre! Que cena mais hilariante essa, hã? Que pena não termos assistido ainda mais de perto! Logo naquela viagem tão pacífica em que iam de visita à avó... no cemitério!!!

Paulo Agostinho disse...

Eu presumo que fosse Galiza, mas nos sonhos nunca se sabe bem por onde se anda!!

Achei que Cátia é um bom nome para uma prima como a descrita pela L.
E acho que fui fiel à narrativa dela, com um ou outro acrescento!

Anónimo disse...

Nos sonhos... Ah, nos sonhos... Falta saber se de olhos avertos ou fechados, hehe! A narrativa está fantástica, apenas a narração ao vivo poderia causar mais impacto e riso, como foi o nosso caso! És um artista, sempre to disse! ;)