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sexta-feira, fevereiro 13, 2009

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Batem à porta. Distraído, rodo a maçaneta e, em primeiro plano, surge a sua figura frágil, presença única no corredor.
Ela sorri e pergunta:
- Podemos entrar?
Sem me dar tempo de estranhar o plural, acrescenta:
- É que somos dois.
Fala com naturalidade, enquanto passa por mim. Na verdade já o esperava. As conversas que tivemos na semana anterior deixaram poucas dúvidas. Confirmavam-se as suspeitas da mãe (que me falara do caso centrando as suas preocupações no que poderiam vir a ser os seus problemas pessoais), confirmaram-se as minhas suspeitas e as do Dr D. Ambos desconfiámos da ansiedade revelada no seu comportamento recente.
Da última vez que falara com a rapariga, antes da manhã da confirmação, evitei rodeios, mas ela preferiu contornar a conversa com negações e trémulas justificações.
- Tudo está bem, um atraso acontece de vez em quando, e têm acontecido vários ultimamente. Com a minha irmã passou-se o mesmo.
- Tens a certeza? Não adianta adiares o que em breve se saberá.
- Sim, tenho a certeza. É só um atraso. Nada mais. Tive sempre todas as precauções.
- Todas?
- Sim. A médica até me trocou a pílula, porque a que eu começara a tomar era demasiado fraca.
Mas não era um atraso. A ida ao médico, no dia após esta última conversa, confirmou a gravidez. A ansiedade dela parece ter-se dissipado com a confirmação. Entrou na sala sorridente, com uma leveza e uma alegria que eu não esperava e que a muitos tem espantado. Quando a notícia se começou a espalhar, todos se mostraram inicialmente incrédulos, fundando a incredulidade nessa incompreensível alegria. Agora eu é que estava a adiar a conversa. Tinha de pensar no que lhe iria dizer. Ou melhor, tinha de escolher cuidadosamente as palavras que fossem fiéis ao que queria dizer. Para isso precisava de tempo. E a aula que ia começar deu-me esse tempo. Não queria falar, pelo menos por agora, em frente aos alunos. Temia a reacção deles. Não é um grupo que inspire confiança nestas questões. Há ali línguas que são chicotes a julgar os outros.
No final da aula, falámos.
- A tua mãe já sabe?
- Já.
- E como é que reagiu?
- Não muito bem. A sorte é que a minha irmã me ajudou.
- E tu, como te sentes?
Encolhe os ombros.
- Normal. Bem.
- Falaste com a doutora?
(A doutora é quem a acompanha na protecção de menores)
- Sim, ela já sabe.
- E o pai?
- Também.
- Reagiu bem?
- Sim, disse que assumia.
- Está cá? Estuda?
- Não. Trabalha em Espanha.
- E quando vem?
- Daqui a quinze dias.
- E a mãe dele já sabe?
- Ainda não. (pausa) Ele diz que não tem coragem para lhe dizer. Vou eu falar com ela.
- Quando?
- Não sei. Talvez quando ele vier.
- E que pensam fazer?
- Ter a criança. Eu queria juntar-me, mas ele diz que ainda está confuso. Assume o filho, mas quanto a juntar-se, diz que ainda é cedo, que está muito confuso.
Quem vai tendo conhecimento do caso vai procurando explicações para tão improvável serenidade e alegria. A primeira hipótese assenta na imaturidade e na ingenuidade de quem não sabe a mudança que o seu mundo vai sofrer. A segunda hipótese olha para a gravidez como um pretexto para deixar uma casa onde a felicidade é a mais improvável das sensações. A irmã escapou da mesma forma e a fortuna com que o destino a bafejou, dando-lhe um companheiro com uma família acolhedora e compreensiva, poderá ter criado na rapariga a ilusão de sorte idêntica. Há ainda quem considere que a alegria é (pelo menos em parte) fruto das atenções que ela está a ter. Todos falam com ela com palavras de algodão, as anteriores críticas e condenações deram lugar a conselhos, os olás distraídos foram trocados por perguntas que denotam preocupação com o seu bem-estar, a escola que parecia apenas preocupada (assim pensaria ela) em impor-lhe regras e limites, agora "impõe-lhe" refeições regulares. Mesmo os colegas, que não tinham problemas em a criticar directamente, roçando a ofensa em várias situações, agora evitam fazê-lo e, pelo menos na aparência, tratam-na com carinho. Já discutem entre si possíveis nomes para a futura criança, já se chegam a ela encostando a orelha à barriga procurando ouvir o coração que já bate:
- Parece uma gota de água a cair, disse uma das colegas.
A mãe, quando a gravidez estava por confirmar, falara em expulsá-la de casa. O dr. D. lembrou-a que, se não expulsara a filha mais velha, não deveria expulsar a mais nova. Tudo parece estar mais pacífico desde então, mas a senhora é instável, e não se sabe quanto tempo durará esta acalmia. A tempestade poderá ter várias origens: a rapariga vai ganhar consciência da realidade e a forma como conseguir lidar com as mudanças será decisiva. Conseguirá ela cumprir regras quando nunca foi capaz de o fazer antes? Conseguirá resistir à tentação de sair de desaparecer de casa durante um ou dois dias em busca de diversão? Um bebé não tranca as portas nem prega as janelas, e sabe Deus que nem isso a prendeu antes. Conseguirá a mãe manter o frágil equilíbrio que por agora vai demonstrando? Como será a reacção do futuro pai e da sua família? Encontrará a rapariga a saída que parece desejar? Irão viver juntos, como acontece muitas vezes por aqui, para se separarem depois de algum tempo de discussões, ofensas e traições, como também acontece muitas vezes por aqui? Irão viver juntos e ser felizes (na medida em que ser feliz é possível, qualquer que seja a situação)? Irão viver separados, mas apoiando-se mutuamente? Irá ela criar a criança sozinha, como fazem muitas mulheres por aqui, mesmo as que são casadas?
Incógnitas como estas e outras mais multiplicam-se em redor de uma menina de 17 anos. Cada menina grávida contém em si inúmeras questões novas. Agora, para além desta rapariga, pensem em mais uma. E em mais uma. E (já se começa a falar) ainda em mais uma...

1 comentário:

Anónimo disse...

Será o verdadeiro pai da criança o pai, por excelência, por que todos esperávamos? Rezemos para que sim... Pobre criança inocente que por aí vem...

Ser feliz é possível, qualquer que seja a situação??? Muito me conta, sr...