Faço o pedido como pretexto para pôr fim ao tédio da viagem. O autocarro arrasta-se pela estrada, deixando o Porto para trás. Dir-se-ia que está relutante em regressar à montanha. Talvez seja a ideia da longa subida que o demove de se apressar. Os solavancos, o calor e o cansaço do dia acentuavam o tédio. A rapariga olhou-me. Nessa manhã tinha-me dito que os seus olhos verdes eram mais claros quando ela era mais pequena. Sorriu, as bochechas encheramm-lhe o rosto e os olhos estreitaram-se, lembrando uma chinesa. Mas isso foi de manhã, à sombra do meteorito da casa da música. Agora o seu rosto está mais cansado e o olhar mais pesado.
«Uma história?» - pausa. «Contava-lhe a minha, a da minha família. Dava um filme.»
«Ou um livro...», acrescento.
«Ou um livro. Uma história de mancos e falhados.»
«Quem são os mancos?»
«Os que se mantêm presos, mesmo quando sabem que têm de avançar. Não avançam. Mancos.»
«E os falhados?»
«Esses são os que já desistiram de viver. Os que apenas esperam pela morte.»
«E onde estás tu aí no meio?»
«Eu? Sou a sobrevivente.»
«Nesse caso, há esperança para ti.»
«Sou uma sobrevivente porque faço de conta, não ligo ao que se passa.»
Mente. O que sabemos da sua história (que ela conta agora apenas por alusões) desmente-a. Do pai sabe-se pouco. Um dia, foi a uma reunião à escola. «Bêbado, bêbado, bêbado. E sujo. Os lábios negros de vinho, as mãos, a roupa.», descreveu o director de turma, com uma expressão de horror. Durante a reunião, o homem parecia ausente. Falava-se de A. e ele descia ao mundo. «Está a falar da minha filha?». Após meia hora de interrupções, já os outros encarregados de educação faziam coro com o director, «não senhor, está a falar da D.» Ou da M.
A mãe é também alcoólica. E era ela a "falhada" de que a rapariga falava. Pelo menos uma das falhadas. Já se tornou uma frase feita dizer que a rapariga é mãe da mãe. A senhora mantém-se sóbria de manhã, enquanto a filha está presente para lhe dar a medicação. Mas quando ela se ausenta, o álcool substitui os comprimidos. A rapariga chegou à humilhante situação de implorar às vizinhas que não vendam nem ofereçam vinho à mãe. As vizinhas, que se divertem com o espectáculo da embriaguez alheia, sempre ignoraram as súplicas e, à hora de almoço, já a mãe se encontra num estado que impossibilita qualquer diálogo compreensível.
«És uma sobrevivente, mas não é verdade que não ligas ao que se passa. E isso mostra bem a tua força.»
Voltamos a falar na linguagem dos códigos e das alusões.
«A força está a acabar-se. Não dura sempre e tem sido duro. Demasiado sofrimento.»
«Teu? Ou da outra pessoa?»
«Meu e da outra pessoa.»
«Qual anulavas, se pudesses?». Assim que faço a pergunta, percebo a sua inutilidade. Mas tinha de manter a conversa viva, antes que ela se refugiasse no silêncio.
«Apagava o da outra pessoa.»
«Porque assim apagavas também o teu.»
«Claro. Se terminasse um, podia terminar o outro.»
«E não acreditas que vai terminar?»
«Só com mais sofrimento. Sabe, a minha vida está a afundar-se. É um navio a ir ao fundo.»
«Não, não és tu que estás a ir ao fundo. tu és apenas um dos tripulantes.»
«Só que quando o barco afunda tudo afunda com ele.»
«A tripulação pode salvar-se.»
«Como?»
«Um navio naufragado que se quebra com a tempestade, lança tábuas de madeira para a água. E essas tábuas podem ser de salvação.»
«Este navio não.»
Silêncio.
«Há outras formas. Nadar. Até boiar...»
«Já não consigo. É muito sofrimento. A outra pessoa não quer mudar. Se pudesse, sacrificava o meu corpo para ela ficar bem. Mas ela não quer mudar.»
«Se essa pessoa tivesse de escolher, diria o mesmo, escolhia salvar a tua vida em troca da dela.»
Digo isto sem conhecer a senhora, mas confiando em algo que todos acreditamos ser universal, o amor de uma mãe por uma filha. Sei que não é universal, mas há coisas nas quais nunca devemos deixar de acreditar.
«Ora... Não, essa pessoa não.»
Haverá maior desilusão para uma rapariga desta idade? Reconhecer que não vale um sacrifício da própria mãe? Os seus olhos recuperaram o brilho, agora mais aquoso. Mas nenhuma lágrima cairá durante esta conversa.
«É por isso que lhe digo que o sofrimento só chegará ao fim depois de mais sofrimento. Só com a morte.»
Referia-se à morte da mãe.
«Há casos de dependência que estão para além da nossa capacidade de ajudar. Se a outra pessoa não quer, se se recusa a lutar, não podemos vencer por ela. Essa pessoa está a dizer-te que desistiu. E isso dá-te o direito de te salvares, de não te deixares arrastar. Dá-te o direito de sobreviver.»
Ela percebe-me. A sugestão crua - abandonar a mãe à sua sorte para ela se salvar - não a choca. Apercebo-me que já colocou essa hipótese muitas vezes.
«Não posso. Serei sempre culpada pelas outras pessoas. E terei o peso na minha consciência.»
Não perguntei onde estão essas pessoas que inevitavelmente aparecerão para a criticar agora, porque não aparecem para a ajudar numa situação tão grave? A viagem prosseguiu até ao destino. E a história não chegou ao fim. Pelo menos ainda não.
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