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segunda-feira, maio 28, 2007

A rapariga entrega o papel dobrado em oito. Olho para a folha. Arrancada de um caderno e escrita com letra azul.
"Ontem perguntou o que tinha. E como não respondi na altura, escrevi aqui e queria que lesse."
Guardei a carta garantido que leria com atenção.
No fim do dia, cheguei a casa e desdobrei o pedaço de papel. Começava com um infantil "querido diário", adequado não tanto à idade, mas à timidez da rapariga. O texto, no entanto, de infantil tinha apenas a letra. Trata-se de uma mistura de desabafos com relatos do seu passado. Retirada à família biológica, ela conheceu já duas famílias de adopção, se assim as podemos chamar. Problemas com a primeira levaram "as doutoras" (termo com que apelida as senhoras da segurança social ou do tribunal de menores) a arranjar-lhe nova família. Com ela foi também um irmão, mais velho. Há ainda outra irmã, mas não sei se é filha da mãe adoptiva se da mãe biológica. O irmão, chegado aos 18 anos, foi "convidado" a deixar a casa de adopção. Motivo? Provavelmente porque a partir dos 18 entra na idade adulta e a família já não recebe o dinheiro correspondente ao "encargo." Daí que a rapariga (que percebe bem as coisas) deseje não ser "um fardo", um "saco de batatas que se atira de um lado para o outro." Sempre que algo corre mal, vem a ameaça da devolução por parte da família adoptiva. Nos dias normais, há apenas momentos e gestos de abandono ou desprezo. Claro, isto é apenas a versão dela, e estas histórias têm sempre dois lados, geralmente nenhum deles o correcto.
Quando a família adoptiva começou a impedir o namoro (a uma rapariga de 16 anos) e repetiu as ameaças de devolução, quando a proibiu de comunicar com a mãe biológica (com a qual o contacto não é proibido, já que nesta forma de adopção esses laços podem ser mantidos); quando na escola as notas desceram no nível da linha de água onde flutuavam com muito custo, ela pensou que nem o futuro seria bom, nem o presente justificava uma existência. A casa tem uma varanda alta. Ela ficou lá durante longos momentos a olhar. Não para o horizonte, mas para baixo. A medir as distâncias? A pressentir a queda? A procurar outro caminho?
Deu um passo em direcção ao gradeamento, colocou-se do lado da queda e ficou segura apenas pelas mãos. Ao sentir os pés soltos no ar talvez tenha tido medo. Em si procurou com toda a força motivos para não se deixar cair. Procurou, procurou, procurou... E encontrou um. Fez força para se erguer, subiu as grades e passou para o lado seguro. No chão, sentiu o coração tremer. Não resolveu nada.
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Há muito tempo atrás, conheci (conhecemos) outra pessoa que seguiu ritual parecido. Várias vezes se sentou à janela a pensar na queda. Um dia decidiu-se. Sem querer (ou poder?) saltar directamente, decidiu ficar suspensa apenas pelas mãos. Quando já se encontrava assim, disse-me mais tarde que se arrependeu e quis subir novamente. Mas a força dos braços não a puxava para cima. Nessa altura sentiu que tinha apenas um caminho. E deixou-se cair.

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