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quarta-feira, junho 10, 2009

Auto-de-fé

Coimbra, 1 de Junho de 1984
"Auto-de-fé de todos os manuscritos antigos. Foi como se queimasse a alma. Mas tinha de ser. Não quero que nenhum abutre futuro, incapaz de compreender o que custa e significa um verso, sacie a gula necrófila no lixo da inspiração. Tartamudo de nascença, só por aproximações sucessivas consegue um mínimo de clareza expressiva. Eu próprio fico aterrado quando revejo as teimosas, consecutivas e canhestras versões do mesmo texto. Chegam a confranger, de tão informes e comprometedoras. Deixar esses tacteios à posteridade serviria apenas para tirar força ao que agora parece evidente. O póstumo é sempre lúgubre, valha o que valer. Ora, não são os meus despojos que pretendo legar aos vindouros. É o mais vivo de mim, o que não testemunhe a tortura do percurso, mas a graça da chegada."
(Miguel Torga, Diário, Vol. II)

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