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segunda-feira, julho 14, 2008

vida perdida

«A procissão passa pela Ferreira Borges? Olha, não fazia ideia.», disse a senhora para a irmã. Falava enquanto costurava, numa cozinha iluminada pela janela que olhava para o olival. Tem os dedos finos, o corpo magro e envelhecido, o cabelo apanhado em bola no cimo da cabeça. É uma mulher pequena, como são todas na família.
A irmã olha-a. Sorri, mas por dentro o paladar do que sente é amargo.
«Tu não me digas que vives nesta cidade há cinquenta anos e não sabes por onde passa a procissão?!»
O espanto é genuíno, porque há situações que nunca deixam de surpreender, mesmo quando pensamos que vimos o seu fundo negro.
«Olha, que queres tu? Não sabes o que foi a minha vida? Nunca pude fazer nada, tudo o que fiz foi lavar escadas, costurar, fazer a comida ao velho e cuidar dos cães, dos pássaros e dos bichos todos. Nunca pude ir a lado nenhum.»
Ir a lado nenhum não significa aqui viajar, mas descer a rua até à calçada, atravessar a estrada em direcção ao rio e esperar do lado de lá da ponte que a procissão passe. A imagem rodeada de rosas poderia tê-la olhado e libertado do seu estado, da prisão de uma atracção transformada em medo e dependência por um fadista e caçador, que há vinte anos - segundo dizem - está para morrer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom! Gostei de verdade!