Seguidores

quinta-feira, julho 31, 2008

Churchill, nobreza, cavalaria e maquinaria

(Gaudi)

Na Idade Média, o cavaleiro era o mais honrado dos combatentes. Mesmo que combatesse apeado, nunca deixava de ser cavaleiro. Tinha os seus códigos de honra, um orgulho próprio, um sangue distinto. Vermelho como os camponeses peões que sangravam ao seu lado, mas distinto. A honra vinha (entre outras coisas) do facto de combater corpo-a-corpo. Esta forma de combate implica mais riscos do que todas as outras porque o inimigo está aqui à frente, à distância de uma lança, de uma espada, ou até de um abraço. Mortal. E implica também uma luta interior, um conflito que se vive abaixo do arnês cintilante do cavaleiro, mas no seu próprio coração e na sua consciência: vencer a resistência de matar. Quanto mais próximo se está do inimigo, maior é essa resistência, porque lhe ouvimos a respiração, lhe vemos e reconhecemos as definições do rosto, enfrentamos o seu olhar. E, no momento do golpe, ouvimos a espada perfurar a carne e esmagar os ossos, os gritos de dor, a morte na expressão, o cheiro enjoativo do sangue. E ainda poderemos perceber as últimas palavras, às vezes na nossa própria língua.

Por tudo isto, havia um grande desprezo dos cavaleiros em relação aos arqueiros e besteiros (que combatiam à distância) e aos operadores dos engenhos que lançavam pedras. Conta-nos Fernão Lopes, na Crónica de D. João I (segunda parte) que, em 1386, Nun'Álvares Pereira, dialogando com D. João I, condenou a guerra de cerco precisamente porque nestas operações muitos cavaleiros eram mortos com armas de arremesso por adversários que, na luta individual corpo‑a‑corpo não o conseguiriam fazer. Com estas, “mata huum villaão com huuma beesta ou pedra que deita do muro, sem bem nenhuum que per as maão faça.
(arqueiros representados na tapeçaria de Baieux)

Este desprezo não era tido em conta pelos reis, que não dispensavam os seus arqueiros e besteiros, peças essenciais para muitas vitórias (sobretudo em cercos, que eram as formas de luta mais frequentes, já que as batalhas eram escassas). Os mesmos reis não deixaram de incentivar o uso de engenhos e, depois, das armas de fogo. No entanto, a cavalaria sobreviveu até ao século XX, e a sua noção de honra também. Churchill que, aos 21 anos, nos anos 90 do século XIX, foi membro do quarto regimento de Hussardos (elite da cavalaria inglesa) classificou a carga de cavalaria como o "maior evento de todos". E continuou com o seguinte lamento:

"É uma pena que a guerra tenha desprezado tudo isto na sua gananciosa, vil e oportunista caminhada e se tenha voltado, como alternativa, para químicos de óculos e chauffeurs que puxam as alavancas de aviões e metralhadoras ... A guerra, que costumava ser cruel e magnífica, passou agora a ser cruel e esquálida. A verdade é que foi completamente estragada, tudo por culpa da democracia e da ciência. A partir do momento em que se permitiu que um e outro destes intrusos, que tudo põem em desordem, participassem verdadeiramente nos combates, o fatal destino da guerra estava traçado. Em vez de um pequeno número de profissionais bem treinados a defender a causa do seu país com armas antigas e uma bela e intrincada manobra arcaica ... temos agora populações inteiras, incluindo até mulheres e crianças, lançadas umas contra as outras num brutal extermínio mútuo e nada mais que um conjunto de funcionários de olhos cheios de remelas em lista de espera para aumentar ainda mais a conta do carniceiro... A guerra deixou de ser um jogo de cavalheiros. Ao diabo com tudo isto!"
(Churchill, Os meus primeiros anos, Guerra e Paz, pp. 76 77).


Churchill escreveu estas palavras após a Grande Guerra de 1914-18. Antes de Hitler, Mussolini e Estaline. Antes da Batalha de Inglaterra, de Estalinegrado, de Pearl Harbor, do Dia D e de Hiroxima.

1 comentário:

Anónimo disse...

Quase se consegue sentir o pó na pele e o cheiro a sangue e suor do campo de batalha! Mais uma vez, parabéns pela capacidade de transformares meras palavras em beleza! Continua sempre... sempre... sempre...