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sábado, novembro 17, 2007

Os loucos I

O edifício foi construído para servir de escola. Entretanto, com o ensino caído em desuso graças às maravilhas das novas oportunidades, pensou-se no seu desmantelamento. Porém, um plano de recuperação de edifícios públicos foi posto em prática e o velho edifício (ou melhor, a velha estrutura de edifícios, um conjunto de blocos ligados por linhas de coberturas de zinco ou imitando telhas cinzentas) passou a servir de enfermaria e centro de dia para os loucos e os inadaptados. O ministério do ensino, de forma discreta, enviou para lá todos aqueles seus funcionários em estado de demência. Muitos estão num estado tão avançado que acreditam ainda estar em funções. Jovens e enfermeiros adultos contratados para representarem o papel de alunos e pais ajudam à ilusão, numa política de saúde inovadora. Todas as manhãs, os loucos se dirigem para o edifício, alimentados a café, açúcares e tabaco. Horários são distribuídos pelo enfermeiro-chefe, ou pelas enfermeiras do seu gabinete. Os loucos, esperando o chamamento de sereia das campaínhas, um cântico incómodo, ao mesmo tempo odiado e irresistível, enchem as salas de convívio, a seu tempo intituladas de salas de trabalho. Numa das mesas, um homem grande e vestido de negro, com uma voz forte e incómoda, abre a sua pasta. Todo o conteúdo está alinhado de forma exacta e compartimentada. Sofrendo de um problema de organização compulsiva, o homem é incapaz de lidar com o inesperado. Tornou-se impaciente, irritável. Quem o observa pensa num kappo em Birkenau e violinos amargurados parecem ouvir-se lembrando tempos de morte frio e sofrimento. A pasta fecha-se o observador desperta dessa imagem que o possuiu.
O seu olhar procura outro alvo. Num canto da sala está sentada uma mulher de cabelos ondulados e negros, com um rosto e um corpo que poderiam ser atraentes, mas que acabam por provocar uma estranha repulsa (instintiva, um pressentimento de perigo escondido no olhar vazio e penetrante ou nos gestos que parecem calculados e ensaiados até ao mínimo detalhe). A mulher está isolada e em silêncio. Quando chegou, nos primeiros tempos do seu tratamento, mostrara-se extrovertida e alegre. Essa capa, porém, caiu ou desfez-se e hoje os outros doentes passam por ela como se de uma estátua se tratasse, um corpo inerte depositado num dos sofás de tecido sujo. Mesmo assim, a mulher por vezes fala e a sua voz ergue-se enchendo a sala. O ruído incomoda os outros, que ouvem em silêncio primeiro, depois em burburinhos de pássaros, de asas de insectos ou de águas caindo à distância. Olham-na por momentos, depois desviam o olhar para o chão e deixam-na envolvida no seu discurso.
(continua)

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