A segunda sala (separada da primeira por uma simples porta de madeira) está reservada para os casos de dependência. É nela que os fumadores se reunem, sentados em redor de mesas que servem de suporte para os cinzeiros. Aspiram o fumo e expiram-no depois de sentirem o seu efeito no corpo e nos sentidos. O governo e as autoridades sanitárias, na sua ânsia de combaterem todos os vícios que não os seus, mais legítimos, da mentira e da pilhagem e do arrogante pretencionismo, já têm estruturadas leis e regulamentos que, por mero pudor, não apelidaram de "solução final", mas que é copiada da original. O seu objectivo é o extermínio completo do vício e a criação da sociedade perfeita (pelo mesmo motivo, foi já proibido o acesso dos pacientes à coca-cola, em nome da sua saúde e da independência cultural da Europa).
Na sala repleta de fumo, os fumadores apresentam olhar triste e os rostos e os corpos cansados. O tabaco dá-lhes forças, brilho no olhar e um sorriso nos lábios. Até a beata morrer esmagada no cinzeiro e a campaínha soar. O fumo liberta também as palavras e, pouco a pouco, também o riso. Por esse motivo, a sala é frequentada vários pacientes que escaparam à prisão do vício, atraídos pelas vozes que lhes poderão acalmar a angústia da solidão que os sufoca. Alguns parecem ter tanto para dizer. Mas entram e sentam-se e ouvem, de olhos baixos e ombros curvados, à espera que algo aconteça. Acabam por se retirar, sem que nada aconteça.
A sala atrai também um curioso grupo de interesseiros, pacientes internados por vários motivos mas que têm em comum uma dificuldade em assumirem a sua condição de viciados. Iludem-se negando-se a comprar tabaco, mas não resistem a pedir continuamente cigarros, dia após dia, com um sorriso já ensaiado. Pelo facto de gostarem de consumir o que hoje se considera um luxo com o dinheiro de terceiros, alguns destes elementos foram diagnosticados como sofrendo de um síndrome designado de "Teixeira dos Santos", nome de um dos casos mais graves e noticiados em vários meios de comunicação.
Também nessa sala, está sentado um homem, um vulto cinzento e curvado, quase sempre silencioso. Entra olhando o chão, na crença de assim a sua presença passar despercebida, procura um lugar vazio e senta-se. Quando fala, o tom de voz é tímido, quase inaudível. Abre uma volumosa pasta de mão, a transbordar de folhas desordenadas, com pontas dobradas e vincadas, cheias de desenhos e garatujos feitos a esferográfica. O seu tema preferido são rostos femininos, de cabelos ondulados, olhos imensos e uma expressão de tristeza que nasce contra a sua vontade. Com a mão, procura uma caneta nos bolsos, estende uma folha na mesa, que alisa com a outra mão, e principia a desenhar. Durante o tempo em que o desenho se vai compondo, entra numa espécie de mundo próprio e o tempo parece passar mais depressa e mais leve.
Junto a ele, uma rapariga segura o cigarro no ar, com o cotovelo apoiado na superfície branca da mesa, de forma a manter o fumo longe de si. A sua fixação não são desenhos, mas números. O seu olhar percorre a sala contando mosaicos e descobrindo padrões, ordenando-os de três em três, de cinco em cinco. Apaga um cigarro e sorri satisfeita. O seu sorriso é bonito e não pertence àquele local. O homem que desenha aprecia-lhe o sorriso. Por esse motivo, quando termina um desenho, ou mesmo a meio, liberta-se um pouco do seu mundo e mostra a folha à rapariga. Invariavelmente ela sorri e ele sabe disso. Olha-a, guarda-lhe o sorriso na memória, na esperança que se prolongue, e continua o desenho ou inicia outro.
Uma outra rapariga entra na sala. Tem o cabelo desenhado em ondas claras e caído, como braços de quem desistiu. O seu rosto é atraente, mas está escurecido por olheiras e as suas palavras são lamentos e prenúncios de fragmentação interior. Fala pouco e sempre mantendo uma distância de desconfiança em relação aos outros, lembrando um animal acossado. A sua fragilidade deixa-a à mercê das agressões dos enfermeiros e, no entanto, lá está dia após dia, no seu lugar, tentando aguentar mais algum tempo.
O barulho que enche a sala é a voz de um dos pacientes, que sofre crises obsessivas. Essas crises podem ser despoletadas por uma simples palavra que alguém diga e que lhe desperte a atenção. Nessa altura, começa a falar sobre o assunto em questão, num discurso interminável que se desenha em espirais que vão preenchendo o tempo e a sala. Não é o pior caso do género. Ataques semelhantes têm sido verificados em dois ou três dos pacientes, tendo um deles balbuciado uma tarde inteira patetices sobre arquitecturas, casas e ruas, lamentando, no final, o tempo de vida gasto em conversas inúteis.