Na rua, junto ao Tejo, a brisa do fim do dia ia dissolvendo o calor que se sentiu durante a tarde. A cada sopro, os vestígios do sol e do ambiente abafado eram soprados para o passado. O rio vai chapinhando contra o paredão e uma gaivota pousou num pilar de betão, antes de descer e deixar-se ficar a boiar, sentindo o embalo das águas. Por cima, o teleférico passa, aparentemente vazio, e ao longe a linha curva da Ponte risca o leito do rio, com luzes pontuando o seu traçado. Várias pessoas caminham, a par ou a sós, por esse passeio agradável. Um rapaz está sentado a escrever, apoiado num degrau. Outro ouve música. Uma menina, de vestido colorido diz "quero ver o rio" e recusa-se a seguir o irmão (parece ser o irmão) que por fim a puxa, apesar da birra e da atracção irresistível da paisagem. "Ali à frente também podes ver o rio", respondeu-lhe e lá a persuadiu, mais pela força com que puxava do que pelo poder do seu argumento. Ali o rio era motivo de espanto, para quê procurar mais além? Há que concordar com a menina.
No Pavilhão, passado o aparato policial, bastante cordato e pouco invasivo, linhas de cadeiras vermelhas numeradas (pares à direita, ímpares à esquerda do corredor central) aguardam a chegada dos seus ocupantes. O palco tem já os instrumentos, um piano e um teclado, uma bateria ao centro, vários microfones, instrumentos de sopro à direita e uma cadeira. Será nessa cadeira que o guitarrista, um virtuoso, como lhe chamará o cantor, irá tocar e levar a assistência a agradecer com aplausos entusiasmados. Mas isso acontecerá depois. Por agora o palco está vazio, iluminado a verde, à esquerda, e a vermelho, à direita, com nuances amarelas entre as duas cores, lembrando a bandeira republicana. É ano de centenário, e até aqui se nota. Nos dois grandes monitores, dois corações entrelaçados formam a Estrela de David ou, melhor dizendo, a Estrela de Leonard.
Pelo terceiro ano consecutivo, Leonard Cohen veio a Portugal. O primeiro concerto, no Passeio Marítimo de Algés, teve o valor supremo de nos conceder a satisfação de uma ânsia que julgávamos impossível. O segundo concerto, já na sala protegida do Pavilhão, trouxe mais das velhas canções e foi, também nesse sentido, superior. O terceiro concerto, que em breve teria início, não ficaria atrás dos anteriores. Cohen canta do promontório dos seus sábios 75 anos e o que transmite é serenidade, poesia e inteligência viva. Faz-nos desejar envelhecer. Ou, primeiro, viver como Leonard viveu.
A menina do cais não está aqui presente. Mas está outra, à minha frente, de cabelo liso e fita cor-de-rosa, a perguntar aos pais se também ela poderá cantar. Mais tarde, ela irá deitar-se no colo do pai, uma imagem que soube a uma vaga nostalgia, com a música expondo e revelando os sentimentos e os sentidos.
A maioria do público tem outra idade, mas este é um concerto para todas as idades, desde que o coração bata dentro dos corpos, algures cá dentro - as harmonias e as palavras, percorrendo os labirintos e as entranhas, inevitavelmente o conseguirão tocar e dizer-lhe "estás vivo - também tu podes cantar, à tua maneira, com as tuas palavras e o teu ritmo."
A sala encheu-se, ouvem-se mais vozes, alguém fala inglês duas filas mais atrás, uma mulher solta uma gargalhada junto ao palco, o ar tem traços de perfumes e os breves relâmpagos das máquinas fotográficas vão anunciando a tempestade. Na fila aqui à frente, um casal de certa idade e bem instalado (na vida e nas cadeiras), vai conversando. A mulher veste laranja e tem um fio de ouro ao pescoço. O perfume que sinto é dela. O marido tem uma camisa banca e sapatos que só alguém com muito dinheiro teria o descaramento de usar - de uma cor clara e indefinida, com padrão de quadradinhos.
Apagam-se as luzes. O resto não se descreve. Durante três horas de música sublime, o mundo é diferente, é mais céu do que inferno. E as palavras são mais orações do que blasfémias. Leonard, como um mestre, um velho professor, um avô (talvez como um avô), faz-nos acreditar no divino. E as vozes das irmãs Webb, nos coros ou como primeira voz, soam como no paraíso devem soar os cânticos dos anjos, que afinal têm sexo e são anjas. O mesmo vale para Sharon Robinson, embora a sua voz tenha, além da suavidade das companheiras do coro, a força de trombetas, derrubando muros em redor dos nossos sentidos. E os músicos? Ah, os músicos. Seria preciso escutá-los.
Os aplausos, longos, em pé, começaram com a entrada de Cohen no palco e foram-se sucedendo ao longo do concerto, acabando o público por ver e ouvir as últimas canções sem se sentar. Uma reverência que se justificou plenamente, e se repetiu como um ritual - já fôra assim no ano anterior. Quando Cohen cantou I'm Your Man, uma mulher gritou "Yes you are, Mr Cohen, yes you are" e em seu redor as pessoas riram-se, pelas suas palavras e pela forma como a música a invadia. Parecia em êxtase, uma Santa Teresa envelhecida, mas feliz.
Quando a música por fim deixou de se ouvir (três horas, três encore), quando o homem nascido com o dom da voz de ouro saiu de palco, voltou a realidade. As cadeiras esvaziaram-se. No chão, papéis e lixo eram os últimos vestígios materiais da multidão ali anteriomente reunida. Na rua, começavam as filas de trânsito, numa noite que não parecia ter luar. Ao longe, do lado contrário ao da multidão, o rio continuava a chapinhar no paredão e o apelo repetitivo das suas águas soou forte na melancolia inevitável desta descida à terra. Mas, enfim, são estas imperfeições que dão brilho aos momentos únicos que a vida vai tendo: aquelas três horas foram perfeitas, como tinham sido já no ano passado e há dois anos. Como diz o sábio de 75 anos, "there is a crack in everything, that's how the light gets in":
Reportagens da Blitz; e do D. Digital;
1 comentário:
Que inveja... :)
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